
Por Pr. Rilson Mota
Introdução
O capítulo 9 de 2 Coríntios é uma joia teológica que reflete o coração do apóstolo Paulo ao abordar a questão da generosidade cristã. Escrito por volta de 55-57 d.C., durante sua terceira viagem missionária, Paulo se dirige à igreja de Corinto, incentivando os irmãos a participarem de uma coleta para os cristãos necessitados de Jerusalém. Este texto, frequentemente mal interpretado, é usado por alguns para justificar a obrigatoriedade do dízimo na Nova Aliança, equiparando a prática mosaica a um mandamento universal. Contudo, uma análise cuidadosa revela que Paulo não está falando de dízimos, mas de uma oferta voluntária, enraizada na graça e no amor, não na coação legalista.
A tensão entre lei e graça é um tema central no Novo Testamento. A Lei Mosaica, incluindo o dízimo, foi dada a Israel como parte de uma aliança teocrática, com propósitos específicos de sustentar os levitas, os pobres e as festas religiosas (Números 18:21-24; Deuteronômio 14:22-29). Com a vinda de Cristo, a Nova Aliança, selada por Seu sangue, introduz um novo paradigma: a graça, que transforma a obediência de uma obrigação externa para uma resposta interna do coração (Hebreus 8:10-13). 2 Coríntios 9 ilustra essa transição, mostrando que a generosidade cristã não é uma taxa fixa, mas um reflexo da liberdade em Cristo.
Alguns defensores do dízimo na igreja contemporânea argumentam que ele é um princípio eterno, anterior à Lei (Gênesis 14:20) e, portanto, aplicável aos crentes hoje. No entanto, essa visão ignora o contexto histórico e teológico da Nova Aliança, onde a ênfase recai sobre a doação espontânea e alegre, não sobre percentuais obrigatórios. Paulo, em 2 Coríntios 9, não cita a Lei Mosaica, mas apela à gratidão dos coríntios pela graça de Deus, usando a metáfora da semeadura e da colheita para ilustrar as bênçãos da liberalidade.
Este artigo busca esclarecer que 2 Coríntios 9 não endossa o dízimo como mandamento para a igreja, mas promove a generosidade como fruto da graça. Através de uma exegese detalhada, contrastaremos a mentalidade legalista com a liberdade da Nova Aliança, utilizando textos bíblicos originais e fundamentando a argumentação no contexto histórico e teológico. Nosso objetivo é libertar os crentes de uma visão distorcida da doação, incentivando uma prática que reflita o amor e a graça de Cristo.
Argumentação
1. O contexto de 2 Coríntios 9: Uma coleta voluntária, não um dízimo obrigatório
Paulo, em 2 Coríntios 8 e 9, discute uma coleta para os santos pobres de Jerusalém (2 Coríntios 8:1-4). Ele elogia a generosidade dos macedônios, que, apesar da pobreza, contribuíram voluntariamente. Em 2 Coríntios 9:1-5, Paulo exorta os coríntios a prepararem sua oferta, mas não menciona o dízimo (em grego, dekate). A palavra usada é eulogia (bênção) e koinonia (comunhão), indicando uma doação livre, não uma taxa fixa. Isso contrasta com a obrigatoriedade do dízimo na Lei (Levítico 27:30-32).
2. A ausência da Lei em 2 Coríntios 9
A Lei Mosaica exigia que o dízimo (10% dos produtos agrícolas e rebanhos) fosse entregue aos levitas (Números 18:21). Paulo, um ex-fariseu versado na Lei (Filipenses 3:5), não apela a essa prática. Em vez disso, ele enfatiza a motivação espiritual: “Cada um contribua segundo propôs no seu coração, não com tristeza ou por necessidade; porque Deus ama ao que dá com alegria” (2 Coríntios 9:7, ARC). O termo grego proaireomai (propôs) sugere decisão pessoal, não imposição externa.
3. Lei versus graça: O novo paradigma da Nova Aliança
A Nova Aliança, estabelecida por Cristo, cumpre e transcende a Lei (Mateus 5:17; Hebreus 8:6-13). O dízimo era parte de um sistema teocrático que sustentava o templo e os levitas, mas na igreja, não há templo físico nem sacerdócio levítico (1 Pedro 2:9). A generosidade cristã é impulsionada pela graça, como Paulo explica em Romanos 6:14: “Porque o pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça” (ARC). 2 Coríntios 9 reflete essa liberdade.
4. A metáfora da semeadura e colheita: Bênçãos espirituais, não materiais
Em 2 Coríntios 9:6, Paulo usa a imagem da semeadura: “Aquele que semeia pouco, pouco também ceifará; e aquele que semeia em abundância, em abundância também ceifará” (ARC). Alguns interpretam isso como promessa de prosperidade material, mas o contexto aponta para bênçãos espirituais e comunhão com Deus (v. 8-10). A “justiça” mencionada no versículo 10 (citando Salmos 112:9) refere-se à retidão e impacto eterno da generosidade, não a riquezas terrenas.
5. A motivação da generosidade: Gratidão pela graça de Deus
Paulo conecta a doação à graça (charis) de Deus: “E Deus é poderoso para fazer abundar em vós toda a graça” (2 Coríntios 9:8, ARC). A palavra charis aparece cinco vezes no capítulo, destacando que a generosidade é uma resposta à graça divina, não uma tentativa de comprá-la. Isso ecoa Efésios 2:8-10, onde a salvação pela graça leva a boas obras. O dízimo, por contraste, era uma obrigação, não uma expressão de gratidão.
6. O dízimo antes da Lei: Um argumento frágil
Defensores do dízimo citam Abraão (Gênesis 14:20) e Jacó (Gênesis 28:22) como exemplos pré-Lei. Contudo, esses casos eram voluntários, não mandatórios, e Abraão deu apenas dos despojos de guerra, não de sua renda regular. A Lei formalizou o dízimo para Israel, mas a Nova Aliança não o reinstitui. Jesus, em Mateus 23:23, critica os fariseus por dízimarem sem amor, mas não manda os discípulos dízimarem, pois Seu foco é o coração.
7. A universalidade da generosidade na Nova Aliança
Enquanto o dízimo era restrito a Israel, a generosidade em 2 Coríntios 9 é universal, aplicando-se a todos os crentes. Paulo cita o Salmo 112:9 em 2 Coríntios 9:9, mostrando que a justiça de ajudar os pobres transcende a Lei. Gálatas 6:10 reforça isso: “Façamos bem a todos, especialmente aos da família da fé” (ARC). A doação cristã não tem percentual fixo, mas é proporcional à fé e capacidade (1 Coríntios 16:2).
8. A liberdade da doação alegre
O versículo-chave, 2 Coríntios 9:7, enfatiza a alegria na doação. O termo grego hilaros (alegre) implica entusiasmo, contrastando com a coação do dízimo. Em Atos 20:35, Paulo cita Jesus: “Mais bem-aventurada coisa é dar do que receber” (ARC). Essa mentalidade reflete a liberdade da graça, onde o crente doa por amor, não por medo de maldição, como alguns interpretam erroneamente Malaquias 3:8-10.
9. A administração responsável das ofertas
Paulo assegura que a coleta será administrada com integridade (2 Coríntios 9:5; 8:20-21), um princípio aplicável às igrejas hoje. Diferentemente do dízimo, que tinha destino fixo (levitas, pobres, festas), as ofertas na igreja sustentam missionários, necessitados e ministérios (Filipenses 4:15-18). Isso mostra que a generosidade cristã é dinâmica, adaptada às necessidades da comunidade.
10. A teologia da suficiência divina
Em 2 Coríntios 9:8-10, Paulo garante que Deus suprirá os que doam generosamente. A “suficiência” (autarkeia) não é riqueza, mas contentamento em Cristo (Filipenses 4:11-13). Isso desmonta a teologia da prosperidade, que distorce o texto para prometer ganhos materiais. A verdadeira recompensa é espiritual: “enriquecidos em tudo para toda a liberalidade” (v. 11, ARC).
11. O impacto da generosidade na comunidade
A doação dos coríntios resultaria em ações de graças a Deus (2 Coríntios 9:11-12). Isso reflete o propósito da generosidade: glorificar a Deus e edificar a igreja. Em Atos 4:32-35, os primeiros cristãos compartilhavam tudo, sem menção ao dízimo. A generosidade unia a comunidade, mostrando que o evangelho transcende obrigações legais.
12. A graça indizível de Deus
Paulo conclui 2 Coríntios 9:15 com um louvor: “Graças a Deus pelo seu dom inefável!” (ARC). O “dom” é a salvação em Cristo, a base de toda generosidade. Isso reforça que a doação cristã é uma resposta à graça, não uma tentativa de merecê-la. Romanos 12:1 apela a uma vida de sacrifício vivo, onde a doação é parte do culto racional, não um imposto religioso.
13. Implicações práticas para a igreja hoje
2 Coríntios 9 desafia a igreja a abandonar o legalismo do dízimo e abraçar a generosidade espontânea. Pastores devem ensinar a doação como fruto da graça, não como obrigação. Os crentes, por sua vez, devem avaliar seu coração e recursos, doando com alegria e fé (1 Timóteo 6:17-19). A liberdade da Nova Aliança permite que cada um decida quanto e como dar, confiando na provisão divina.
Conclusão
O estudo de 2 Coríntios 9 revela que a generosidade cristã é um reflexo da graça de Deus, não uma continuação do dízimo mosaico. Paulo, ao exortar os coríntios, não impõe percentuais, mas apela à liberdade e alegria na doação, fundamentadas na suficiência divina. A Nova Aliança substitui a obrigação da Lei por um chamado à liberalidade que glorifica a Deus e edifica a comunidade. Assim, o texto desmonta a ideia de que o dízimo é mandatório para os crentes hoje, apontando para um caminho mais excelente: o amor expresso em doação voluntária.
A tensão entre lei e graça, tão evidente no Novo Testamento, encontra em 2 Coríntios 9 uma resolução prática. A Lei exigia; a graça inspira. O dízimo era uma sombra; a generosidade é a realidade em Cristo. A igreja deve ensinar essa verdade, libertando os crentes de fardos legalistas e incentivando uma doação que flua do coração transformado pelo evangelho. Como Paulo destaca, Deus ama o que dá com alegria, e Sua graça é suficiente para suprir todas as necessidades.
Este capítulo também nos lembra que a generosidade tem um impacto eterno. As ofertas dos coríntios não apenas aliviaram os pobres, mas geraram louvor a Deus. Hoje, nossas doações podem sustentar missionários, ajudar os necessitados e avançar o evangelho, tudo para a glória de Deus. Que a igreja contemporânea viva essa visão, doando não por coação, mas por gratidão ao “dom inefável” de Cristo (2 Coríntios 9:15).Por fim, 2 Coríntios 9 nos convida a refletir: Como estamos respondendo à graça de Deus? Nossa doação reflete a liberdade e o amor da Nova Aliança, ou estamos presos a conceitos ultrapassados da Lei? Que possamos, como os coríntios, semear abundantemente, confiando que Deus multiplicará os frutos para Sua glória e o bem de Sua igreja. Que a graça, e não a lei, seja o motor de nossa generosidade.
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